terça-feira, 24 de novembro de 2009

Entrevista Anne-Marie Chartier

Ano VI - Nº 20 - Oralidade, alfabetização e letramento - Julho
Entrevista
Anne-Marie Chartier
Para a francesa Anne-Marie Chartier, alfabetizar é um ofício que, mais do que uma boa base teórica, requer muito trabalho prático e interação com outros profissionais. Para a pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisa Pedagógica, sediado em Paris, considerar que o conhecimento teórico basta pra ensinar as crianças a ler e escrever é uma ideia infundada. "Seria o mesmo que imaginar que se pode aprender a tocar piano lendo tratados de musicologia", compara. Nesta entrevista, concedida com exclusividade à Pátio Educação Infantil, Anne-Marie Chartier fala sobre alfabetização e letramento com a clareza e o conhecimento da realidade nacional que já são familiares a muitos educadores brasileiros, tanto por sua presença em diversos eventos quanto por seus livros publicados. Leia a seguir os principais trechos.
Alfabetização na prática

Alfabetização e letramento são conceitos diferentes?

Tradicionalmente, a alfabetização era definida como a capacidade de decifrar de modo correto um texto, oralizando-o. Não significava necessariamente compreendê-lo: as crianças que sabiam decifrar o Credo ou o Pai-Nosso não precisavam explicar o significado dessas orações. Já os "letrados", que na época eram os clérigos, sabiam ao mesmo tempo ler e explicar esses textos. Quando os ingleses inventam a palavra literacy, que durante muito tempo não teve equivalente nas línguas latinas dos países católicos, eles designam a "cultura primária", os saberes acerca da escrita (a ortografia, a gramática, o cálculo escrito) e, mais tarde, "os saberes de base" (os primeiros elementos de história, de geografia ou de ciências ensinados na escola). Com as avaliações internacionais, como o PISA, foi necessário inventar palavras para designar esses saberes de base: littéracie ou letramento.


Na prática, o que significa o surgimento desse novo conceito?

Toda alfabetização é realizada sobre textos que vão constituir uma primeira cultura escolar. Não é a mesma coisa que ela seja construída sobre textos religiosos ou morais, ou sobre textos instrutivos e informativos, ou ainda sobre pequenas narrativas ou textos divertidos tirados da literatura para crianças. Os saberes ligados à alfabetização sempre ultrapassam a simples decodificação. A grande mudança decorre de que o teste que mostrava que o indivíduo sabia ler, ou seja, que era alfabetizado, era a leitura em voz alta. Com as avaliações modernas, mede-se se o aluno, criança ou adulto, sabe ler no sentido de compreender o que significa o texto, lendo as respostas escritas que ele deu a questões escritas no texto. O que se chama de "saber ler" no segundo caso está ligado ao letramento, não à alfabetização.


Essa distinção é relevante no processo de alfabetização de uma criança?

Em cada época, o processo de alfabetização realiza-se sobre os suportes escolhidos pela instituição. Nos próximos anos, se as competências das crianças forem avaliadas não em papel, mas em telas de computador, o que se chama "saber ler" hoje talvez não seja mais considerado como um "saber ler" suficiente. Essa distinção é importante para definir o que subentende o termo letramento em determinado período. O letramento de hoje não é mais o dos anos 1900, mas talvez pareça arcaico em 2100. Portanto, é fundamental para o professor, que é o responsável pelo ensino, saber claramente qual o desempenho a que deve visar.


Qual é o papel da educação infantil no processo de ensino da leitura e da escrita?

Penso que, na França, as aprendizagens pré-escolares desempenham um papel muito importante: sem a escola maternal, os resultados dos alunos seriam bem mais medíocres. Quando chegam à pré-escola, entre 6 e 7 anos, as crianças já cursaram três anos de escola maternal. Elas sabem segurar um lápis, sabem o que é um exercício, conhecem os rituais de vida de uma sala de aula, aprenderam a se expressar em grupo, ouviram a leitura de livros ilustrados, conhecem refrões, músicas, poesias: tudo isso constitui uma cultura da escrita e dos saberes escolares consideráveis. Quando vejo as classes de alfabetização do Brasil, percebo claramente essa diferença. Nas escolas privadas, as crianças têm o mesmo nível que na França, às vezes até um nível melhor; porém, nas escolas públicas populares que visitei, pude constatar, de modo geral, um a dois anos de defasagem, o que é normal.


O que pode ser considerado importante no desenvolvimento da criança para o aprendizado da leitura e da escrita?

Quando uma criança aprende a ler e a escrever, e essa é a situação mais frequente na escola, pode-se dizer que todos os elementos constitutivos da aprendizagem "funcionaram bem". Quais estão ligados ao desenvolvimento da criança? Quais dependem de fatores externos? É difícil dizer! Há fatores sensoriais (a criança ouve e enxerga bem?), fatores de maturidade psicológica, análise do funcionamento da escrita, capacidades de memória, habilidades gráficas, etc. O que impressiona é que muitas crianças que têm "tudo para fracassar" aprendem, enquanto outras que têm "tudo para vencer" fracassam: é preciso considerar, portanto, que as coisas não são mecânicas e que o papel dos professores também é fundamental.


Quais são as condições favoráveis para que uma criança se alfabetize? E qual é a importância de que as crianças convivam com diferentes portadores de leitura e escrita desde muito pequenas?

As pesquisas mostram que o nível de escolarização dos pais é um dos fatores mais importantes para o êxito escolar das crianças. Contata-se isso hoje com a chegada à França de populações imigrantes analfabetas: as crianças podem muito bem aprender a ler e a escrever, mas os casos de fracasso são numerosos, sem dúvida porque as práticas familiares não podem reforçar as aprendizagens feitas em aula. Quando uma mãe vai às compras no supermercado com os filhos, é diferente se ela compra ervilhas em conserva lendo o que está escrito na embalagem, ou olhando a foto, ou pedindo aos filhos que leiam o que está escrito na embalagem. No primeiro caso, a criança vê como procede uma mãe leitora e procurará imitá-la; no segundo caso, ela aprende que pode "se virar" sem ler e não será tentada a reinvestir o que aprendeu; no terceiro caso, ela vê que a leitura de que é capaz pode ajudar sua mãe analfabeta a não se deixar enganar por uma imagem e será estimulada em suas aprendizagens.


Em que medida o fato de ter alguém que lhes conte histórias e disponibilize o contato com livros de literatura infantil pode contribuir na construção da leitura e da escrita pelas crianças?

Contar histórias para as crianças ajuda a que aprendam a ler, pois nossa escola privilegia esse tipo de texto nos manuais. Se tivéssemos uma escola que privilegiasse um outro tipo de texto, por exemplo, as descrições "científicas", como certos manuais dos anos 1880-1920 na França, os contos continuariam sendo muito valiosos para ajudar as crianças a crescer, mas não serviriam em nada para aprender a ler. As crianças sempre são favorecidas quando já têm uma ideia do que vão encontrar em um texto (é sobre "a vida dos camelos", "Branca de Neve", "um acidente de carro"). Elas antecipam uma "construção geral do texto" que evita que se fixem em cada palavra − e ficariam muito surpresas se os três textos começassem por "era uma vez".


Existe diferença entre ler histórias em um livro e contá-las de memória?

Ler histórias para crianças não é recontar histórias. As releituras habituam a criança a que o texto seja fixo, qualquer que seja o leitor, enquanto uma narrativa oral pode ser sempre a mesma sem que as palavras sejam exatamente iguais. Nesse sentido, as crianças aprendem que um texto não é algo que se adivinhe ou que se invente a partir de uma trama, mas que é uma realidade muito impositiva que exige que cada palavra seja respeitada, o que é um fator bastante tranquilizador, graças justamente a essa estabilidade. Ao mesmo tempo, essa fixidez do texto não impede "interpretações" diferentes na entonação, na acentuação, na dicção, nas ideias que suscita, etc. Por isso, é importante reler em sala de aula textos já conhecidos, como os pais fazem em casa com os filhos.


Atualmente se fala muito de iletrismo, sobretudo na Europa. Como isso se relaciona com os processos de aprendizagem escolares da leitura e da escrita?

O grau de iletrismo de uma população é sempre definido em função das exigências sociais em matéria de leitura-escrita de determinada época. Evidentemente, no século XXI, quando qualquer procedimento administrativo exige preencher formulários, quando para tomar um café você precisa ler as instruções sobre a máquina antes de depositar uma moeda, quando você precisa fornecer um currículo para qualquer emprego, até para ser faxineira, a definição do iletrismo não é mais a mesma! É por isso que as exigências em relação à escola evoluem.


Como esse processo ocorre na prática?

Na França, todo mundo pensava que a escola ensinava de forma suficiente até os anos 1950-1960. Porém, após essa data, considera-se importante prolongar os estudos de todos até os 16 anos e garantir a continuidade do estudo dos filhos. O resultado é que, depois de alguns anos, todo mundo pensa que a escola primária não ensina bem as crianças a ler e escrever. O que poderia parecer um êxito em certo período é considerado como um fracasso quando a escola precisa adaptar-se às novas exigências sociais. Está claro que hoje a alfabetização das novas gerações requer que elas sejam capazes de ler e escrever em computador, de consultar as bases de dados da internet. A definição está mudando mais uma vez. É possível que, em 20 anos, não seja mais com a literatura infanto-juvenil que se ajudará melhor as crianças a entrar na cultura escrita escolar e social.


Durante muitos anos, a discussão mais significativa sobre alfabetizar as crianças era a opção por um determinado método (fonético, palavração, de contos, silábico, etc.). Que rumo tomou essa discussão hoje?

As pessoas continuam discutindo e brigando a esse respeito, mas eu tenho dificuldade de compreender o porquê. Parece-me que isso se deve ao fato de cada discurso privilegiar uma dimensão da aprendizagem e esquecer-se de falar das outras. Todavia, quando se olha de perto a sala de aula, constata-se que todos os professores fazem as crianças trabalhar com múltiplas entradas. Do contrário, elas não aprenderiam a ler! Nenhum professor sensato contenta-se em fazer decodificação de sílaba ou reconhecimento direto de palavras inteiras. Assim, pode-se dizer que todos trabalham utilizando uma via "fônica", mas também "silábica", na decomposição oral das palavras, mas também "global", pois nenhum método de leitura apresenta unidades desprovidas de sentido para começar: vai-se de palavras lidas "globalmente" para sua decomposição, quer se trate de nomes de crianças, de palavras simples escritas sob imagens, etc.


O que, então, caracteriza um bom método de alfabetização?

A meu ver, é o modo como um professor alterna quatro tipos de situações pedagógicas: aquelas em que ele procura fazer com que toda a turma leia para conhecer o sentido de um texto; aquelas que são "situações-problema" para refletir sobre a maneira como "o escrito codifica o oral" ou como "o oral é transcrito"; aquelas que permitem consolidar certas aprendizagens, automatizar aquisições (os exercícios em que em cada criança deve desempenhar-se individualmente); aquelas em que as crianças tentam ler ou reler sozinhas os textos ao seu alcance, sabendo que podem pedir ajuda. Todos os professores visam, no fim das contas, a que as crianças consigam ler "sem esforço", isto é, de forma automática. Para isso, sempre é necessário fazer muitos exercícios de treinamento e um trabalho bastante regular, quase rotineiro. Mas o que ficou muito claro nestes últimos 30 anos foi o seguinte: quando se propõem esses exercícios a crianças que não têm uma "cultura escrita" e não compreendem sua função, isso exige delas um esforço terrível e geralmente em vão. Isso faz com que tomem horror pela leitura. Como dizia Rousseau, falando daquele pequeno aluno do século XVIII, empanzinado de exercícios silábicos inúteis: "De que lhe servirá a leitura depois que o fizerem rejeitá-la para sempre?".


Na sua opinião, qual deve ser a formação de professores com relação à alfabetização?

O conhecimento teórico não é suficiente para saber ensinar as crianças. Seria o mesmo que imaginar que se pode aprender a tocar piano lendo tratados de musicologia. É preciso, portanto, ter uma formação prática. Fazer trabalhar toda uma turma, mobilizá-la, saber utilizar bem um livro, qualquer que seja, guardar na memória o desempenho de cada aluno para adaptar suas exigências, tudo isso requer muito mais tempo, mesmo que se possa ganhar com a convivência com professores experientes. Costuma-se considerar que uma boa formação "acadêmica" tornará os professores mais competentes. Eu sou menos otimista. Penso que o ofício de alfabetização requer uma formação profissional específica, feita de alternância entre trabalho prático, discussão sobre o que se faz, o que se leu, o que as crianças souberam fazer ou não, mas sobretudo de interações com outros profissionais.

Fonte: Revista Pátio online

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